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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Reflexões: Eu e a violência



Morador de rua na Rua da Praia em tarde de domingo.(Foto: Melgare) 
Sempre acreditei que este período que antecede o ano que acaba, e, ao mesmo tempo, já projeta o novo ano que vem, é tempo para profundas reflexões. Nas últimas edições tratamos de uma forma abusiva de violência, a praticada pela especulação imobiliária contra vizinhos de seus empreendimentos, com a chancela do Poder Público. Mas existem outras expressões de violência que merecem ser revisitadas pela nossa atenção.

A mais importante, por certo, é a estrutural. A diferente condição social leva à oferta desigual de oportunidades aos indivíduos. Muitas vezes, quando caminho pelas ruas do centro, onde é freqüente encontrar-se pessoas em situação de rua, fico cismando: O que seria destes pobres se recebessem oportunidades iguais aos demais? Por quantos eu quase tropeço pelas calçadas e escadarias, que poderiam ser como uma Daiane dos Santos, um Barbosa, ou até mesmo uma versão tupiniquim do grande Mandela? E utilizo estes exemplos só para sublinhar, também, uma das mais hediondas formas de violência, que é a racial.

Carrinho no centro de Porto Alegre. (Foto: Eduíno Mattos)
Quando chega a noite, e nos dirigimos a nossas casas, para o convívio familiar e o descanso, muitas vezes nos sentimos molestados por som alto, algazarras, e gritarias provocadas pela violência urbana. A nossas portas convivem: o tráfico de drogas, a prostituição, brigas, assaltos e tiroteios. Transgressões descontroladas que, se nada for feito, serão incontroláveis. Os pólos de atração de todo este impacto de vizinhança da noite, com certeza, são as casas noturnas, cujo licenciamento e controle são funções públicas. Tudo se fez, nos limites de uma organização comunitária, para contribuir com soluções, e apesar da nossa insistência, até hoje se aguardam encaminhamentos.

A distribuição de alimentos a pessoas em situação de rua é uma ação meritória que não pode ser contestada, mas que traz em seu bojo a cristalização de núcleos permanentes de moradores de rua. A estes se junta uma população de egressos do sistema carcerário, refugada pela família e pelo mercado... Com o tempo começa a se desenvolver ali o tráfico de entorpecentes. Este é outro retrato multifacetado da violência de nossas ruas que urge controle público.

Os espaços para geração de renda em condições especiais, e cito como exemplos os ambulantes e os papeleiros, estão cada vez mais restritos. Os primeiros, traídos pelo sonho do camelódromo, permanecem excluídos enquanto categoria. Os últimos, com a espada de Dâmocles sobre a cabeça. Os papeleiros abrangem uma população de cerca de 50.000 almas. Por lei, em 2016, será retirado o principal equipamento de trabalho da categoria, o carrinho. Recicladores na prática cotidiana contribuem para a preservação da natureza e para a potencialização da economia. Trabalham de graça numa função de interesse público e disto tiram o seu sustento. O que será destes pobres? Como será a vida desta verdadeira cidade subnormal incrustada em enclaves no tecido urbano, durante o ano da Copa?

Pedestres sem espaço nas calçadas. (Foto: Eduino Mattos)
 E nossas ruas? Garantias do Direito Humano fundamental de ir e vir, e que se apresentam a nós com absoluta segregação. A falta de acessibilidade exclui a todos com necessidades especiais. As calçadas esburacadas, que tanto vitimam idosos, cada vez menores... As ruas dominadas pelos automóveis, que poluem, mutilam e matam mais que as guerras, mas no asfalto são os senhores. Sempre com a razão, com suas buzinas potentes e latarias reluzentes. 
Massa Crítica de ciclistas de dezembro. (Foto: Naian Meneghetti)

  Cuidem-se pedestres e bicicletas! Todos pagam o capeamento asfáltico, mas ciclistas não possuem espaços dignos e pedestres só podem dispor por breves segundos.

Páginas seriam necessárias para ponderar o amplo espectro de violência que convive em nossas ruas e nas vizinhanças. O importante é refletir sobre os fundamentos. Sobre a nebulosa fronteira entre a exploração econômica predatória, sem respeito à natureza e à vida, e a estrutura pública, permeada pela permissividade contemplativa. O maior obstáculo é uma ordem econômica distribuidora de privilégios e disseminadora de degradação. O caminho a ser desbravado e pavimentado é da gestão pública comprometida com o interesse ambiental e social, acima do pragmatismo eleitoral.

Manifestação em junho deste ano contra corte de árvores na Usina do Gasômetro. (Foto: Ramiro Furquim)
Em grande medida quem produz a realidade é a gestão pública, que emana da política e deriva da vontade do votante. Cabe aqui o auto questionamento do quanto cada um de nós é responsável pelos descontroles existentes, uma vez que majoritariamente não realizamos o controle cidadão dos atos políticos da gestão pública.

O controle social realizado por cada um que possui condições subjetivas de fazê-lo é critério objetivo para a construção de melhores dias, e manifestação viva de amor real. Um bom Natal a todas e a todos, e um ano novo com muita cidadania.


Paulo Guarnieri
Publicado no Jornal do Centro/ edição Natal
Dezembro/2013

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